A YPF e a dialética latino-americana

Amílcar Salas Oroño (*)A decisão do Governo argentino de expropriar a Repsol/YPF é uma medida que deve-se observar tanto pelo que é, uma afirmação da capacidade de regulação política por parte do Estado, como pelos efeitos que pode gerar no âmbito de seu impacto: é uma decisão e, ao mesmo tempo, uma advertência, um sinal frente às formas que assumem certos comportamentos capitalistas em nossas periferias latino-americanas. Talvez seja precisamente sobre este aspecto que a disposição se torna relevante e auspiciosa também para os países vizinhos, para as agendas progressistas de seus governos, e incômoda para os “países centrais”.
As dialéticas de mercado que vêm denunciar – e anular – haviam se convertido em absurdos rentáveis que, à maneira das tradicionais sujeições coloniais, praticamente não deixava nada nestas terras: nos últimos tempos, quase 90% dos lucros da Repsol/YPF iam para fora do país. Seguir aceitando este esquema não só teria posto em xeque as capacidades do desenvolvimento energético, econômico e social da nação; também tinha custos com respeito a nossa autoestima coletiva, moral. Daí que a expropriação fosse vivenciada com um sentido de júbilo cidadão, coisa que costuma acontecer quando, de tempos em tempos, conseguimos separar de nossa experiência singular aqueles obstáculos (externos) que se antepõe entre nós e nossa realização.

Os comportamentos capitalistas na América Latina têm uma longa lista de barbaridades e violências em sua existência, explícitas ou sutis, características inerentes à natureza própria do momento de sua implantação: as necessidades de expansão e acumulação da Europa. Sobre essa matriz de intercâmbio e trânsito de mercadorias, se definiram em paralelo às fórmulas internas do disciplinamento social e os modelos ideológicos do pensamento, elementos indispensáveis para que o dinamismo econômico resultante pudesse colocar a “situação periférica” em um rol subsidiário, circunstancial, à serviço do processo civilizatório do “centro”.
Nesse sentido, fomos construídos (capitalisticamente) como subalternos, como apêndices. Boa parte dos comportamentos oligárquicos de nossas elites dominantes esteve sempre iluminado por aquele signo inaugural, sem falar dos capitalistas estrangeiros que continuaram fazendo negócios em nossos territórios; assim é como estas latitudes se converteram em espaços geográficos para todo tipo de aventueiros. Entretanto, houve momentos nos quais, como país, como região, conseguimos reverter a direção dos vetores que determinavam as interações do mercado: a causa do petróleo, de Mosconi a Cárdenas e de Perón a Vargas, foi uma circunstância emblemática e chave na construção de uma dialética histórica de signo diferente, de caráter nacional, popular, com uma “centralidade” no Estado. E volta a ser agora, em pleno século XXI.

A expropriação da Repsol/YPF encerra as características da época ao mesmo tempo em que propõe uma síntese que vai além. Por um lado, deixa claro que o Estado deve e pode estar ali, controlando, socializando, normatizando, atuando e tomando as decisões mais drásticas – como a da YPF – ou microssociais. Nunca há uma geração espontânea da experiência, sempre é um processo histórico que implica um trabalho constante; ainda mais quando o neoliberalismo está, segundo o país, ou bem presente em inúmeros estímulos cotidianos, ou bem escondido em forças políticas competitivas.
Por outro lado, a medida também resulta em uma afirmação (política) com respeito às características que deve assumir o mercado. Não se trata estritamente de uma “estatização”: o caráter de sociedade anônima se mantém, como se mantém outros princípios próprios de uma empresa privada – com maioria acionária estatal. Como mensagem, a expropriação se torna necessária: o interesse nacional deve estar incorporado nos modelos de valorização e acumulação contemporâneos. Não se trata de fazer qualquer coisa e de qualquer maneira; em parte, porque já não nos aceitamos como espaços residuais. Mas está claro que, e posto que o dinamismo atual esteja articulado em torno desse circuito, as “forças do mercado” são um componente do ciclo, ainda mais em um setor estratégico como o energético.
A eficácia se compõe de ambos os elementos, nenhum em separado: interesses privados e regulação pública. Nossas possibilidades endógenas se definem na originalidade que se possa imprimir à combinação entre mais Estado e mais mercado; no final das contas, é essa composição a que nos permitiu propor uma saída do encerro neoliberal. Isto não supõe que, chegado o caso, algum dos termos não deva ser reestruturado; muito pelo contrário. Os comportamentos capitalistas sempre devem ser objeto de seguimento e correção e mais correção: sua lógica não é precisamente a da filantropia.

Não é que estejamos saindo das contradições latino-americanas, talvez apenas estejamos entrando mais de cheio nelas. Mas o que este século XXI nos está mostrando é que não só somos capazes e merecedores de poder defini-las segundo nossos próprios critérios, mas que a saúde de nossos povos vai de mãos dadas com essas autoafirmações nacionais que se vem tentando. Medidas como a expropriação da Repsol/YPF tratam dos limites do capitalismo, dos “países centrais”, do que pode ser feito com nossos recursos e com o trabalho vivo que os transforma. Que as conjunturas cotidianas estejam repletas de assimetrias, desgraças reparáveis e violências absurdas, não é nenhuma novidade: até poucos anos atrás éramos a porção mais desigual do planeta. Mas o que não pode ser negado é que há uma reconstituição espiritual latino-americana, de vocação descolonizadora, e elementos objetivos e subjetivos para poder desagregar e desarmar aqueles vetores do passado. Talvez estejamos nos mostrando – os argentinos, os brasileiros, os latino-americanos – que há mais para nós mesmos que o que sempre pensamos que haveria, que o que sempre tinham guardado para nós. Um tempo histórico aberto, intenso, dialético; um germinal.
(*) Instituto de Estudos da América Latina e Caribe (Universidade de Buenos Aires)

Acerca de Nicolás Tereschuk (Escriba)

"Escriba" es Nicolás Tereschuk. Politólogo (UBA), Maestría en Sociologìa Económica (IDAES-UNSAM). Me interesa la política y la forma en que la política moldea lo económico (¿o era al revés?).

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