Os cúmplices da ditadura

Em vários países da região estão sendo investigados os delitos de sangue cometidos durante as ditaduras militares, mas até aqui ficaram de fora os atores econômicos que interessadamente a promoveram ou a facilitaram, isto é, as pessoas, instituições e empresas que forneceram bens e serviços àqueles governos ou que obtiveram benefícios em troca do apoio à execução dos planos criminais. Coautores, associados, instigadores , conspiradores, executores, cúmplices, beneficiários são alguns dos possíveis formatos desses vínculos, que devem ser investigados.
Horacio Verbitsky se uniu a Juan Pablo Bohoslavsky para fazer esse levantamento sobre a Argentina, no livro “Cuentas pendientes”, que tem como subtítulo “Os cumplices da ditadura” (Siglo XXI).
Conforme foram sendo desvendadas as causas econômicas desse regime, a denominação “ditadura militar” foi sendo substituída por outra, que se aproxime à realidade do que foi um “bloco cívico, militar, empresarial e eclesiástico”.
“Empresários que são processados penalmente por contribuir a desaparecer a seus operários, vitimas que demandam aos bancos que financiaram a ditadura, demandas econômicas no foro laboral por detenções no lugar de trabalho que se convertem em desaparições e são declarados imprescritíveis, sentenças que instruem investigar a cumplicidade editorial de jornais, pedidos efetivos de processo contra empresários de meios por ter implementado campanhas de manipulação da informação em conivência com os planos repressivos, processos por extorsão de empresários e usurpação de bens, a criação de uma unidade especial de investigação dos delitos de lesa humanidade com motivação econômica no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos e de um escritório de coordenação de politicas de direitos humanos, memoria, verdade e justiça dentro da Comissão Nacional de Valores, são alguns exemplos desta nova tendência.”
Finalmente se dá a implementação de uma orientação que vem de longe, do Tribunal Militar de Nuremberg, sobre a responsabilidade dos empresários que haviam facilitado bens e serviços para maquinaria estatal nazista:
“Aqueles que executam o plano não evadem sua responsabilidade demonstrando que atuaram sob a direção da pessoa que o concebeu(…) Essa pessoa teve que ter a cooperação de políticos, lideres militares, diplomáticos e homens de negócios. Quando, com conhecimento dos propósitos daquela pessoa, lhes prestaram cooperação, eles mesmo fizeram parte do plano que esta havia iniciado. Eles não podem ser considerados inocentes (…) se sabiam do que estava acontecendo.”
As Comissões da Verdade mais modernas começaram a considerar tanto os problemas econômicos que levaram aos regimes ditatoriais, como o comportamento assumido pelos empresários durante esse períodos políticos. São os casos da comissões do Quênia, da Serra Leoa, da África do sul e do Timor Oriental.
O livro procura contribuir para avançar na responsabilidade jurídica dos atores econômicos que contribuíram com ditaduras e considera a dimensão sócio-econômica desse período afim de:
a) compreender cabalmente a relação que existiu entre o comportamento empresário, a politica econômica do regime e suas consequências, a consolidação do regime e os crimes que ele cometeu;
b) identificar os problemas e as tensões sócio-econômicas que alimentaram o conflito e que podem se reproduzir mesmo em democracia;
c) desenhar os instrumentos adequados para responsabilizar aos cumplices econômicos, e
d) assegurar as condições institucionais atuais que facilitem o debate no marco de um governo democrático capaz de responder e dar solução efetiva aos problemas sócio-econômicos estruturais de hoje, que poder ser um legado – e uma explicação – do período ditatorial.
O livro é o levantamento mais sistemático das relações entre o empresariado argentino e a ditadura militar naquele país e contribui decisivamente para a investigação e a punição dos seus responsáveis. Serve também para que se desenvolva algo similar no Brasil, algo que a Comissão da Verdade apenas iniciou.
A reprodução do índice do livro dá ideia da abordagem geral e dos temas investigados:
Pasado e presente da cumplicidade economica:
1. Por que a dimensão econômica esteve ausente tanto tempo na justiça de transição? Um ensaio exploratório
Marco teórico e dimensão internacional:
2. Ideias econômicas e poder durante a ditadura
3. A geopolítica internacional dos apoios econômicos
A macroeconomia da ditadura:
4. O legado ditatorial. O novo padrão de acumulação de capital, a desindustrialização e o ocaso dos trabalhadores
5. As finanças públicas
6. Cumplicidade dos prestamistas
Cumplicidade e Direito
7. Cumplicidade empresarial e responsabilidade lega. Informe da Comissão Internacional de Juristas
8. Responsabilidade por cumplicidade corporativa. Perspectivas internacional e local
9. Prescrição de ações por cumplicidade
Desaparições a pedido de empresas
10. Os casos da Ford e da Mercedes Benz
11. Acindar e Technint. Militarização extrema da relação laboral
12. Entre a análise histórica e a responsabilidade jurídica: o caso Ledesma
13. Contribuições para a analise do papel da cúpula sindica na repressão aos trabalhadores na década de 1970
14. Supressão dos direitos dos trabalhadores
Associações patronais e agropecuárias: cumplicidade e beneficio
15. O poder econômico industrial como promotor e beneficiário do projeto refundacional da Argentina (1976-1983)
16. A cumplicidade das câmaras patronais agropecuárias
Apropriação ilegal de empresas:
17. A pilhagem organizada
18. A Comissão Nacional de Valores e a avançada sobre a “subversão econômica”
19. O caso do “Papel de jornais”. Contribuição para seu estudo.
Apoios vários, generosos e interessados
20. Meios de comunicação: discurso único e negócios à sombra do terrorismo de Estado
21. O preço da bendição episcopal
22. As tramas ocultas da Itália
23. Os advogados, da repressão ao neoliberalismo
Contas pendentes. Agendas de trabalho.

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